O governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) prepara um decreto para regular o uso da força pelas polícias de todo o país. O texto vai atualizar uma portaria do Ministério da Justiça e Segurança Pública de 2010, a primeira norma editada sobre o tema. As regras não serão impostas aos estados, que são os responsáveis pelas Polícias Militares, Civis e penais (que atuam em presídios).
No entanto, o decreto vai prever que os governadores que quiserem receber dinheiro do Fundo Nacional de Segurança Pública e do Fundo Penitenciário Nacional “para ações que envolvam o uso da força” — ou seja, para comprar armas, munição e instrumentos não-letais — terão que seguir as regras federais.
O texto dá diretrizes para os procedimentos, como as buscas pessoais — conhecidas como “enquadro” ou “baculejo” — e o uso de algemas. Além disso, propõe a criação de um órgão que deverá produzir e divulgar dados sobre mortes causadas pela polícia e mortes de policiais.
Inicialmente, a pasta, sob comando do ministro Ricardo Lewandowski, considerava publicar uma portaria sobre o tema, elaborada por um grupo de trabalho que reuniu especialistas e policiais. A área jurídica da pasta, no entanto, avaliou que a norma deve vir por meio de decreto assinado pelo presidente, por causa de questões formais.
O texto exato do decreto ainda poderá passar por ajustes no Ministério da Justiça e depende da aprovação do ministro Lewandowski para ser publicado. Ainda não há data para a publicação.
1. Emprego de arma de fogo
Neste tema, os principais pontos da portaria de 2010 devem ser mantidos. Veja o detalhamento abaixo:
✔️Pontos mantidos ou com alteração pequena
Quando atirar
Como deve ficar: “O emprego de arma de fogo constitui medida de último recurso.”
Como é hoje: “Os agentes de segurança pública não deverão disparar armas de fogo contra pessoas, exceto em casos de legítima defesa própria ou de terceiro contra perigo iminente de morte ou lesão grave.”
Pessoa em fuga
Como deve ficar: Os policiais “não deverão utilizar arma de fogo contra pessoa em fuga que esteja desarmada ou que não represente risco imediato de morte ou de lesão aos profissionais de segurança pública ou a terceiros”.
Como é hoje: “Não é legítimo o uso de armas de fogo contra pessoa em fuga que esteja desarmada ou que, mesmo na posse de algum tipo de arma, não represente risco imediato de morte ou de lesão grave aos agentes de segurança pública ou terceiros.”
Carro que fura bloqueio
Como deve ficar: Os policiais “não deverão utilizar arma de fogo contra veículo que desrespeite ordem de parada ou bloqueio policial em via pública, exceto quando o ato represente risco de morte ou lesão a terceiros ou aos próprios profissionais de segurança pública”.
Como é hoje: “Não é legítimo o uso de armas de fogo contra veículo que desrespeite bloqueio policial em via pública, a não ser que o ato represente um risco imediato de morte ou lesão grave aos agentes de segurança pública ou terceiros.”
Abordagem
Como deve ficar: Os policiais “não deverão apontar arma de fogo em direção a pessoas durante os procedimentos de abordagem como prática rotineira e indiscriminada”.
Como é hoje: “O ato de apontar arma de fogo contra pessoas durante os procedimentos de abordagem não deverá ser uma prática rotineira e indiscriminada”.
✖️Pontos alterados
Presídios
Como deve ficar: “O emprego de arma de fogo em ambientes prisionais deve ser restrito a situações de grave e iminente ameaça à vida, não sendo recomendado durante as rotinas de movimentação dos presos.”
Como é hoje: Não há restrição para uso de armas em presídios.
Objetivo da mudança: Segundo especialistas, parte das rebeliões em unidades prisionais começa quando os presos conseguem tomar as armas dos policiais penais, o que pode ser evitado diminuindo a circulação dessas armas.
2. Gerenciamento de crise
Esse tópico foi incluído nas diretrizes de uso da força para cumprir uma sentença de 2017 da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que condenou o Brasil por violência policial no caso das chacinas registradas na favela Nova Brasil, no Rio, em 1994 e 1995.
Grandes operações
Como deve ficar:
Os órgãos de segurança pública deverão “planejar estrategicamente as operações”, “utilizar equipamentos de gravação audiovisual nas operações, sempre que possível”, e “documentar e justificar as ações e as decisões tomadas durante as operações”.
Como é hoje: Não há diretrizes na portaria de 2010.
3. Busca pessoal e domiciliar
As diretrizes relativas a esse tema foram elaboradas para adaptar a prática policial a decisões recentes da Justiça, como a de um habeas corpus julgado em 2022 pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ).
O tribunal decidiu que é ilegal a busca pessoal ou veicular, sem mandado judicial, motivada somente pela impressão do policial sobre a aparência ou a atitude do alvo.
Para ser legal, a busca — conhecida como “enquadro” ou “baculejo” — precisa ter uma “fundada suspeita”.
‘Baculejo’
Como deve ficar:
Nesses casos, o policial deve:
➡️”informar à pessoa submetida à busca as razões para a revista e seus direitos”;
➡️”limitar ao mínimo necessário o escalonamento da força durante a busca, de forma proporcional à resistência apresentada pela pessoa”; e
➡️”registrar a identidade da pessoa, as razões para a realização da busca pessoal e o nível de força empregada”.
Como é hoje: Não há diretrizes na portaria de 2010.
‘Fundada suspeita’
Como deve ficar: “A fundada suspeita é uma situação caracterizada por indícios especificamente relacionados a: posse de armas e posse de outros objetos que possam constituir corpo de delito.”
O texto diz também que “não são considerados como elementos suficientes para caracterizar fundada suspeita parâmetros unicamente subjetivos ou não demonstráveis de maneira clara”.
Como é hoje: Não há diretrizes na portaria de 2010.
4. Uso de algemas
As diretrizes sobre algemas, que não existiam na portaria de 2010, foram criadas para ajustar a norma a leis e decretos recentes e também a uma súmula vinculante do Supremo Tribunal Federal (STF).
Como deve ficar: O uso de algemas deve ser “excepcional” e apenas em casos em que haja “resistência à ordem legal”, “fundado receio de fuga do preso” e “perigo à integridade física própria ou alheia”.
Como é hoje: Não há diretrizes na portaria de 2010.
5. Lesão ou morte decorrente do uso da força
Nesse tópico, os principais pontos da portaria de 2010 devem ser mantidos, como a preservação do local da morte e a prestação de socorro às pessoas feridas por ação da polícia.
Uma novidade é a necessidade de avisar imediatamente o Ministério Público, que tem a atribuição de fiscalizar a polícia.
Aviso ao MP
Como deve ficar:
Quando houver morte por ação policial, o órgão de segurança deverá “enviar imediatamente comunicação ao Ministério Público acompanhada de cópia do relatório individual preenchido pelo profissional de segurança pública que efetuou o disparo”.
Como é hoje: Não há essa diretriz na portaria de 2010.
6. Criação do Comitê de Monitoramento do Uso da Força
Uma das principais novidades do texto levado ao ministro Lewandowski é a criação de um Comitê de Monitoramento do Uso da Força, para “produzir relatórios contendo análises e orientações” sobre letalidade policial, mortes de policiais e casos em que as diretrizes de uso da força não estão sendo seguidas.
A proposta é que esse comitê seja composto por representantes de ministérios (da Justiça e dos Direitos Humanos) e de policiais militares, civis, federais e rodoviários federais, além de membros da sociedade civil.
O grupo deverá trabalhar com dados produzidos pelos órgãos de segurança pública. O novo decreto deve prever que esses órgãos criem um “sistema de registro de ocorrências relacionadas ao uso da força que resulte em lesão ou morte”, um meio de aumentar a transparência.
Nesse sistema deverão ser registrados dados como: data, hora e local da morte, nomes dos policiais, da vítima e de eventuais testemunhas, identificação da arma usada, “com descrição do tipo, modelo e número de série” e “as medidas adotadas antes dos disparos”. G1